quarta-feira, 20 de abril de 2011

Texto para o próximo encontro

Texto para discussão no próximo encontro do grupo, que se dará no dia 03 de maio de 2011, as 17:00 hrs.


Sérgio Adorno
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e Coordenador-adjunto do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo

Eu queria, de antemão, agradecer o convite que me foi formulado pela Fundação Pedro Jorge Melo e Silva, pela Procuradoria Geral da República e pelo Instituto de Estudos de Direito e Cidadania, e dizer que eu me sinto satisfeito em poder estabelecer este diálogo. Eu não sou da área do direito, embora em termos de pesquisa eu seja, na verdade, um bisbilhoteiro dos terrenos alheios. Para dizer a verdade, venho investigando a questão dos direitos humanos e da violência, e esse é um tema atravessado pela questão do direito, atravessado pela questão das instituições de justiça, atravessado pela questão do Estado nas suas atribuições de pacificação e de controle da ordem pública, dentro do contexto do Estado Democrático de Direito. Então, por essa razão, como sociólogo, me vejo obrigado a penetrar em áreas alheias, embora não seja especialista na área do direito. O ponto de vista que eu trago para discutir aqui é o dos direitos humanos e, a questão, a do papel do Estado na proteção dos direitos humanos. O ponto de vista de sociólogo, evidentemente, é um ponto de vista entre outros e como tal, parcial, sujeito a discussões, a debates. Mas espero que este ponto de vista contribua para que este seminário possa resultar no balanço de diferentes perspectivas e, ao mesmo tempo, avançar na discussão da proteção e da preservação dos direitos humanos no Brasil.
Começo dizendo que a pergunta que hoje nós, sociólogos, fazemos é: após cinqüenta anos da promulgação, na Assembléia das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que nós temos, de fato, para comemorar?
Evidente que nós temos muitas coisas para comemorar na medida em que hoje podemos pensar que a questão dos direitos humanos está na agenda política, não só nacional, mas internacional. Isso significa dizer que nós temos algo a comemorar. Mas, ao mesmo tempo, temos verificado, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, um cenário bastante acentuado de graves violações dos direitos humanos, sobretudo aquelas que comprometem o direito fundamental, o direito à vida.
Então, pensando um pouco nesse contraste entre uma civilização que aposta na proteção dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, uma violação sistemática destes direitos, é que eu vou refletir um pouco sobre a inserção do Brasil nesse contexto e sobre alguns problemas de direitos humanos da sociedade brasileira. Eu me propus a falar um pouquinho sobre a questão da violência na sociedade brasileira, um painel inconcluso numa democracia não consolidada, embora eu vá fazer um painel bastante parcial, inclusive, em função do tempo.
Após vinte e um anos de vigência do regime autoritário, a sociedade brasileira retornou à normalidade democrática e ao governo civil. Não obstante esses avanços democráticos, não se logrou uma efetiva instauração do Estado Democrático de Direito, persistiram graves violações de direitos humanos, produtos de uma violência endêmica radicada nas estruturas sociais, enraizada nos costumes, manifesta, quer no comportamento dos grupos da sociedade civil, quer nos agentes incumbidos de preservar a ordem pública. Mais do que isso, tudo indica que no curso do processo de transição democrática recrudesceram as oportunidades de solução violenta, dos conflitos sociais e de tensões das relações inter-subjetivas.
Um apreciável número de situações e acontecimentos acumularam-se no tempo, quais sejam, maus tratos e torturas de presos nas delegacias e distritos policiais - como também no sistema penitenciário -, assassinatos e ameaças a trabalhadores e suas lideranças no campo, homicídios, ao que parecem deliberados, de crianças e adolescentes, violências de toda ordem cometidas contra mulheres e jovens - sobretudo no espaço doméstico -, linchamentos e justiçamentos privados, extermínios de minorias étnicas, etc. Sob a perspectiva sociológica, explicar a persistência desses fatos requer considerar, entre outros aspectos, a simetria de direitos políticos e direitos sociais civis, a ausência de mediações funcionais políticas e públicas capazes de assegurar a pacificação da sociedade, bem como as características da cultura política dominante que acena no sentido de um autoritarismo socialmente dominante implantado.
Tentarei, nesta minha exposição, apresentar um cenário da violência no Brasil, um cenário, como eu disse, inconcluso, bastante parcial e, ao mesmo tempo, refletir um pouquinho sobre essas dimensões históricas: os hiatos entre os direitos sociais e políticos, por um lado, e os direitos civis, por outro; a fraqueza das mediações institucionais na resolução de conflitos mais diversos, bem como as características da cultura política brasileira que, num certo sentido, reafirmam o autoritarismo como uma forma de cultura dominante ao lado de uma cultura democrática.
Antes de avançar um pouco nessa discussão, quero fazer três considerações que me parecem extremamente importantes:
Primeira: quando nós falamos em direitos humanos e quando se fala de violência no Brasil, a primeira idéia que nos vem à mente é a violência do crime comum, a violência do delinqüente, a violência do bandido, essa violência representada pelos furtos, pelos roubos, pelos estupros, pelo crime organizado, pelo narcotráfico e, embora essas sejam algumas das formas de violência mais sistemáticas, mais cotidianas e, certamente, das mais significativas da sociedade contemporânea e, inclusive, da sociedade brasileira, o meu ponto de partida diz respeito à impropriedade de reduzir a fenomenologia da violência ao crime comum. Ainda que a delinqüência constitua, na atualidade, uma preocupação legítima do cidadão comum, não há porque e nem como ignorar graves violações de direitos humanos que comprometem o mais elementar dos direitos, que é o direito à vida. É preciso pensar essas outras formas de violência, como os linchamentos, como as execuções sumárias, os assassinatos de crianças e adolescentes, a violência policial, formas não necessariamente conectadas ao crime comum, mas que também comprometem seguramente os direitos fundamentais da pessoa e, particularmente, o direito à vida.
Em segundo, eu gostaria de frisar o caráter costumeiro, institucionalizado e de imperativo moral, de que ainda se revestem as ações violentas da sociedade brasileira contemporânea. Essa característica sugere que a violência, no Brasil, não se restringe ao domínio do Estado. Se há uma tradição de Estado autoritário no Brasil é porque uma sorte daquilo que Paulo Sérgio Pinheiro chamou de autoritarismo socialmente implantado, estou querendo dizer em outras palavras, que se o Estado brasileiro é um Estado tradicionalmente autoritário, não é por que ele é Estado, mas porque a sociedade é uma sociedade que tem raízes no autoritarismo, então, o autoritarismo do Estado é uma dimensão do autoritarismo da sociedade. Compreender por que as instituições muitas vezes são violentas na resolução dos conflitos sociais significa compreender também por que a sociedade aponta e acena muitas vezes para a violência como uma forma de resolução para seus conflitos.
A terceira observação diz respeito ao fato de que as ações violentas não constituem privilégios de classes ou de grupos, embora sua funcionalidade se reporte às relações de poder estabelecidas de uma sociedade fraturada por extremas desigualdades sociais. Estou querendo dizer com isto que, embora nós possamos pensar que a violência e a violação de direitos humanos sejam expressões de conflitos de classe da sociedade brasileira, elas não necessariamente se reduzem a conflitos de classes, quer dizer, nós vamos verificar que o conflito muitas vezes opõe iguais. Se olharmos hoje o que são, por exemplo, as grandes metrópoles brasileiras, particularmente nos bairros que compõem a chamada zona metropolitana, a chamada periferia, veremos que existe uma conflitualidade manifesta entre cidadãos procedentes das classes populares cujo desfecho, muitas vezes, é a supressão da vida de alguém.
Então, feitas estas três observações, gostaria de apresentar um breve painel dessa violência. Peço desculpas para citar dados com os quais, infelizmente nós, pesquisadores e sociólogos, trabalhamos. É a nossa lei, o nosso instrumental, um pouco de análise: são informações, são dados, e eu vou me ater a um dos casos mais graves de violação dos direitos humanos que é a violação dos direitos da criança e do adolescente. Particularmente, quero pensar um pouco em crianças e adolescentes como vítimas dessa violência e, ao mesmo tempo, como agressores, infratores das normas da sociedade. Quero explorar um pouco isso e, evidentemente, não darei conta das outras formas de violência - que também são extremamente graves -, mas me parece que esta forma de violência é mais ou menos paradigmática e emblemática da sociedade brasileira atual.
A violação dos direitos humanos e os desafios que eles propõem à ordem democrática tornam-se, a meu ver, mais graves quando está em foco o direito de crianças e adolescentes. Mais do que proteção legal, o que está em causa é justiça social, é a ausência de políticas sociais capazes de restituir infância às crianças e adolescentes brasileiros.
Eu vou abordar os dois lados da questão - embora pretenda sustentar a idéia de que crianças e adolescentes são vítimas desse duplo processo - mas vou pensar em crianças e adolescentes como vítimas de homicídios, e crianças e adolescentes como autores de infrações penais.
Uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Pesquisa da Violência em 1993 revelou que - desculpem, a pesquisa foi realizada em 1993, mas os dados que vou citar aqui se referem a uma pesquisa feita, pelo Estado de São Paulo, no ano de 1990 - a pesquisa identificou 994 crianças e adolescentes assassinadas naquele ano, o que equivale a uma média de 2,72 crianças por dia. Desse total, 52% morreram no Município da Capital, 28% na Grande São Paulo e 19% no interior do Estado. Comparativamente à população, constataram-se 7,73 assassinatos por 100.000 habitantes. As vítimas se concentraram na faixa etária de 15 à 17 anos (80% delas), a maior parte pertencia ao sexo masculino (85%); quanto às vítimas do sexo feminino (14%), a maior incidência ocorre na faixa de 0 a 9 anos, casos em geral ocorridos no interior da esfera familiar.
A proporção de meninas e jovens do sexo feminino vitimadas é muito menor do que de meninos, mas em compensação, essa proporção é maior na faixa etária de 0 a 9 anos e sobretudo, elas são vítimas de violência doméstica: em geral os agressores são pessoas conhecidas, como pais, parentes e vizinhos.
Observou-se maior incidência de negros (51%) comparativamente aos brancos (45%). Considerado o perfil étnico do Estado de São Paulo esse resultado sugere que um dos alvos preferenciais dos assassinatos são jovens de etnia negra, jovens do sexo masculino e de etnia negra. Em 83% dos casos constatou-se o emprego de arma de fogo, o que revela intencionalidade na consumação do crime de morte; não se identificaram evidências empíricas de que a maior parte das vítimas estivesse comprometida com a delinqüência, ao contrário, observou-se entre as vítimas um número significativo de jovens trabalhadores ou estudantes que se preparavam para ingressar no mercado de trabalho.
A idéia de que esses jovens são jovens comprometidos no mundo do crime é algo bastante discutível e não há informações suficientes que permitam identificar o perfil do agressor. Para a grande maioria dos casos - 70% -, não há identificação de autoria, constatação indicativa da pouca disposição do poder público em apurar a responsabilidade penal dos possíveis autores dos crimes. Conquanto a investigação não tenha confirmado a existência de grupos organizados de extermínio, algumas evidências caminharam nesse sentido, observe-se o perfil preferencial das vítimas. Essa existência de grupos de extermínio foi confirmada, através de recente relatório elaborado por organização não governamental internacional, e estudos que nós temos feito estão confirmando que jovens, crianças e adolescentes são, preferencialmente, vitimadas por grupos de extermínio ou crimes do tipo execução sumária.
Não vou me estender muito, creio que pelo tempo que disponho eu não possa entrar muito nesse detalhe, mas é bem verdade que, aparentemente, os estudos estão indicando um envolvimento, no Rio de Janeiro - em São Paulo não temos dados sistemáticos sobre esse assunto - mas principalmente no Rio de Janeiro, os dados sugerem um grande envolvimento de jovens no mundo do crime, particularmente no crime organizado, como o narcotráfico, o que provoca essa inflação de mortes adolescentes, e que muitas vezes resultam de conflitos entre quadrilhas pelo controle do tráfico de drogas ou conflitos entre a polícia e as quadrilhas. No entanto, pesquisa que realizei junto com a Fundação SEADE veio mostrar os dados relativos à delinqüência juvenil em São Paulo. Esses dados precisam ser analisados com muito cuidado. Sobre o envolvimento de jovens, apesar de grave, faz-se necessário desmistificar a violência de crianças e adolescentes, tal como ela é veiculada pela mídia eletrônica e tal como ela circula no senso comum.
A pesquisa sugere certo descompasso entre o sentimento de insegurança e medo que os jovens - sobretudo aqueles procedentes das classes populares pauperizadas - suscitam no imaginário coletivo, e o efetivo potencial de violência embutido na delinqüência juvenil, potencial manifesto pelas estatísticas oficiais e por outras fontes documentais.
Essa pesquisa foi feita entre 1988 a 1991 e agora, estou atualizando os dados de 1992 a 1997. Em todo esse último período observado, constatou-se leve tendência de diminuição das ocorrências criminais praticadas por jovens a partir de 1989 e, ao mesmo tempo, verificou-se que a criminalidade juvenil violenta é de menor intensidade em comparação à criminalidade violenta do conjunto da população urbana no Município de São Paulo, no mesmo período. Ainda que os padrões de delinqüência não sejam distintos, quando compara-se o padrão da violência dos jovens com o perfil da violência na população em geral, não vemos diferença significativa. Isto significa que o jovem é tão ou menos violento quanto tão ou menos violenta é a população em geral.
Estou querendo com isso, sustentar que, embora o envolvimento dos jovens no mundo do crime seja um fenômeno real, seja um fenômeno significativo, é preciso que a gente trabalhe esses dados com o maior cuidado possível para não exacerbar um problema que, muitas vezes, aparece como insolúvel quando pode apresentar soluções.
Bom, onde eu queria chegar agora e gostaria de discutir com os senhores é o seguinte: o controle legal dessa violência permaneceu aquém do desejado, seus principais obstáculos repousam em circunstâncias sócio-políticas, entre as quais, gostaria de citar:
1ª) O restrito raio de ação dos grupos organizados da sociedade civil. De fato, a despeito do papel essencial que os movimentos de direitos humanos exerceram no processo de reconstrução democrática desta sociedade - sobretudo porque, ao denunciarem casos de violação de direitos humanos, de arbitrariedades e de abuso do poder, exigiu-se das autoridades públicas o cumprimento de suas funções constitucionais -, apesar disso tudo, pouco se avançou no sentido do controle democrático da violência;
2ª) A pronunciada impunidade dos agressores, de modo geral. Não se deslumbrou, ao longo de todo processo, uma efetiva vontade política no sentido de apurar a responsabilidade penal dos possíveis agressores, mesmo quando o poder público acenou, através de uma ou outra autoridade, para a introdução de mudanças nesse quadro;
3ª) A ausência do efetivo controle do aparato repressivo, por parte do poder civil. Esse domínio indica que não houve uma efetiva desmobilização das forças repressivas comprometidas com o regime autoritário e, ainda que a gente possa identificar várias mudanças no interior do aparelho penal, o meu ponto de vista é de que o aparelho policial enfrenta sérias dificuldades para se sujeitar ao governo civil, ao poder civil. Então, essas forças repressivas mantiveram-se presentes, acomodadas ao contexto de transição política.
Contra essa violência, muito pouco tem feito o poder público na apuração da responsabilidade. O sistema de justiça criminal tem se revelado omisso, falho e promotor de não poucas irregularidades.
No âmbito da policia judiciária, observam-se dificuldades para o registro de ocorrências. Principalmente quando se trata da violência no campo, decide-se arbitrariamente o que deve ser registrado, até mesmo quando há vitimas de crime doloso contra a vida, onde, em tese, a presença de um corpo enseja, obrigatoriamente, o registro. Os inquéritos, quando instaurados, são conduzidos com pouco ou nenhum esmero. As investigações necessárias quase sempre não prosperam, não se arrolam testemunhas para tomadas de depoimentos, verificam-se flagrantes falhas da perícia em loco ou na elaboração de autópsia de corpos de delito, não se observam rigorosamente ritos processuais bem como outras exigências legais, entre as quais estão requisitos de cumprimento de prazos para a conclusão de inquéritos.
Não é raro o desaparecimento dos autos ou de parte de seus documentos, circunstância que introduz sérias obstruções no prosseguimento e conclusão de inquéritos, tudo sugerindo seus arquivamentos. No âmbito da justiça penal o elenco de dificuldades não é pequeno: morosidade, não cumprimento de prazos estabelecidos nos ritos processuais, conflitos de interpretação de preceitos legais demandando os necessários recursos das instâncias superiores, circunstância que encarece a distribuição da justiça, que contribui ainda mais para dificultar respostas judiciais rápidas e dotadas de eficácia, tolerância para com graves fatos que comprometem a apuração da responsabilidade penal de pessoas indiciadas em inquéritos penais. Ademais, existência de foro de seção que, atualmente, está em processo de transformação como os tribunais de justiça militar, sugerindo a existência de pautas diferenciadas de justiça, através das quais, cidadãos que cometeram idêntico crime são submetidos a critérios distintos de julgamento.
Não sem razão a impunidade constitui o resultado final desse processo. Gostaria de citar uma recente tese de doutorado intitulada "Vida sem Valor: um estudo sobre homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de segurança pública", elaborada por uma pesquisadora chamada Mira Mesquita. Essa autora estudou homicídios de crianças e adolescentes no município de São Paulo no ano de 1990 e fez o acompanhamento desses casos até a decisão em Segunda Instância. Ela observou que 63 % dos inquéritos policiais instaurados no município de São Paulo com apuração de casos de homicídios de crianças e adolescentes eram arquivados.
O motivo preponderante para o arquivamento em 57% dos casos era o desconhecimento da autoria; em apenas 27% dos inquéritos instaurados verificou-se oferecimento de denúncia por parte do ministério público e tão somente em 9% dos casos houve acolhimento de denúncia por parte do juiz. Após mais de quatro anos dos fatos ocorridos, 6 % dos casos chegaram a julgamento em Primeira Instância e, desse universo, apenas 3% dos réus foram condenados. Entre os casos que subiram à Segunda Instância, ampliou-se a proporção de absolvidos, enquanto reduziu-se a de condenados. Processo final, a pesquisadora concluiu que apenas 1,72% dos casos chegavam a uma sentença condenatória. Tudo isso sugere, por conseguinte, uma espécie de complacência, de tolerância - eu não estou aqui querendo julgar o sistema de justiça, creio que o sistema de justiça é produto dessa sociedade que nós vivemos - mas, há uma certa tolerância dessa sociedade para com esses fatos e com essas graves violências e violações.
Eu diria, talvez de uma maneira provocativa, que o Estado parece estar perdendo o monopólio do controle legal da violência física e legítima, como também parece não revelar, muitas vezes, um resoluto ânimo em proceder apuração da responsabilidade penal e conter essa violência nos marcos do Estado Democrático de Direito.
Bom, nestes últimos cinco minutos que me reservam, eu gostaria de expor algumas idéias e algumas hipóteses a respeito da carência da cidadania democrática que afeta, fundamentalmente, a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, que afeta profundamente a pacificação da sociedade. Eu queria levantar dois ou três pontos que havia anunciado anteriormente, em que vou apenas fazer alguma elaboração. O primeiro deles diz respeito ao hiato entre direitos civis sociais e políticos da sociedade brasileira. Como se sabe, a sociedade brasileira é uma sociedade onde, com a reconstrução da sociedade democrática, os direitos políticos e até mesmo os direitos sociais conheceram um certo avanço, eu diria mais, os direitos políticos conheceram um grande avanço, os direitos sociais, um avanço relativo, mas o grande senão, a grande indagação, diz respeitos aos direitos civis, algo estranho porque se nós estudarmos a história das sociedades ocidentais, a história da civilização ocidental, o modo como a sociedade moderna e a democracia moderna se instalaram na Europa e na América do Norte, verificamos que os direitos civis foram base para o reconhecimento dos direitos sociais e dos direitos políticos.
Estranhamente, na sociedade brasileira, os direitos civis estão divorciados dos direitos sociais e dos direitos políticos. Isso, me parece, de certa forma explica o paradoxo entre uma sociedade que acena no sentido de respeitar direitos fundamentais da sociedade democrática - o direito de livre manifestação e expressão, o direito ao voto, direitos sociais ligados ao trabalho - mas, por outro lado, se não é omissa, permite muitas lacunas em relação à proteção dos direitos civis. Me parece que essa lacuna entre os direitos civis e os direitos sociais se acentua principalmente com as extremas desigualdades sociais da sociedade brasileira.
Eu trago inúmeros dados aqui que gostaria de discutir com vocês a respeito das desigualdades, mas esses ganhos ainda não são suficientes para reduzir, significativamente, as desigualdades.
Então, a pergunta que fica é: como não falar em violência, se sequer os direitos fundamentais (o direito ao trabalho, à educação, à saúde) ou seja, aqueles direitos que recobrem a dignidade da pessoa humana, não estão universalizados, isto é, assegurados para todos os cidadãos?
O segundo aspecto que eu queria colocar como observação para discussão diz respeito à identidade dos cidadãos com as suas instituições e, particularmente, com as suas instituições de justiça. Vários estudos têm mostrado que, de modo geral, o cidadão brasileiro é muito descrente das instituições de justiça, particularmente a polícia, e muitas vezes, com relação aos tribunais. Evidente que essa descrença não é homogênea, diferentes segmentos manifestam diferentes formas de descrença e, evidentemente, a descrença pode ser mais acentuada, por exemplo, do ponto de vista da justiça penal e talvez menos acentuada do ponto de vista da justiça cível.
Mas, de qualquer maneira, pesquisa feita pelo IBGE em 1988 revelou uma elevada taxa de cidadãos que não se identificavam com as instituições judiciais na solução de seus conflitos. Uma das taxas mais altas aparecia justamente quando envolvidos conflitos ligados ao crime. A pergunta fundamental era: o que as pessoas faziam diante desses conflitos?
A resposta básica delas era a seguinte: "resolvi por conta própria". Mas, o que é resolver por conta própria? Resolver por conta própria significa várias coisas, desde o fato de que o indivíduo teve seu direito violado e não tomou nenhuma iniciativa, ou seja, aceitou a violação de seus direitos como um dado, um fato da realidade, até o fato de que, ao agir por conta própria, tentou praticar uma justiça privada como forma de reparação daquela injustiça de que se julga, muitas vezes, ter sido vítima. Este é um dado que me parece extremamente importante.
E, um outro dado para finalizar, e com isto eu finalizo a minha intervenção é que, a despeito de todas as mudanças que a sociedade brasileira vem atravessando e vem passando nos últimos anos, elas não são poucas e, exatamente, são significativas.
É preciso reconhecer que o peso da tradição manifesta-se de diferentes modos, através do corporativismo, através do clientelismo político, através de um certo estilo de gerenciamento dos negócios públicos que remetem, em última instância, a uma sociedade tradicional, de bases patrimonialistas onde, na verdade, a relação política é, fundamentalmente, uma relação de favor em que prevalecem, na verdade, interesses privados sobre os interesses públicos. Isto faz com que, do ponto de vista sociológico, acentuem-se dois componentes da sociedade tradicional no Brasil: de um lado, a preservação de um certo modelo de relações hierárquicas entre classes e grupos sociais, a partir dos quais, alguns indivíduos são socialmente considerados dependentes de outros, são considerados socialmente subordinados a outros. Então as relações hierárquicas no Brasil são relações extremamente rígidas e rigorosas, apesar da suposição de que, em determinados espaços, nós convivemos muito bem. Por exemplo, no futebol, no candomblé, julgamos que se convive muito bem, mas na maior parte de vários outros espaços em que estão em jogo direitos fundamentais, as relações hierárquicas são profundas.
Eu talvez provocativamente jogaria a idéia de que, ainda que possamos dizer que toda essa questão dos saques remetam hoje a formas organizadas de protestos coletivos, de qualquer maneira temos que entender os protestos coletivos, e o Brasil tem uma longa tradição de desqualificar essas formas de protestos. Temos que entendê-los como um fenômeno de criminalidade comum, como um fenômeno de banditismo comum, e que soa muito estranho numa sociedade como a sociedade brasileira atual. Isso acentua, em última instância, o autoritarismo, acentua a idéia de que os lugares estão previamente definidos e que a sociedade deve permanentemente reafirmar essa ordem, reafirmar esses lugares e reafirmar a assimetria de relações de poder entre os grupos de classes sociais que atravessam as relações de gênero, que atravessam as relações de geração, que atravessam as relações de classe e, particularmente, também atravessam as relações raciais nessa sociedade.
Era isso que eu queria dizer. Evidentemente, trata-se de uma leitura muito parcial e talvez até provocativa, mas é, um pouco, o ponto de vista dos sociólogos com relação à problemática dos direitos humanos no Brasil e sua persistente violação, e dos paradoxos da sociedade em insistir na reconstrução da consolidação de um Estado de Direito.

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